terça-feira, 23 de novembro de 2010

"Felizes Juntas, Felizes Iguais"



Começou com uma simples pergunta. E por que não podiam dormir juntas? A final eram irmãs. Mais que isso, irmãs gêmeas. Tão gêmeas que nunca saberiam diferenciar quem era a Clara e quem a Gema. Não havia marca de perfeição ou imperfeição que uma tinha que a outra não tivesse também.

“Engaçado, jurava ter visto que foi aquela quem tinha se machucado!”. Pensava a mãe olhando a cabeçinha delicada da outra.

Compartilhavam as dores e os cortes, as agonias da vida entre outras tantas coisas que viriam. Entre elas, sabiam quem era quem somente pelo fato de não ser a outra, mesmo assim isso se confundia nas madrugas sonâmbulas.

Certas vezes acordavam à noite para ir dormir com os pais porque sonharam que as duas eram saudades. Sempre que se deitava uma, a que despertava era a outra. Sempre seriam parte, sempre partilhariam a inidentidade. Sempre seriam a dúvida de ser a outra. E nunca nada havia de separá-las.

Então por que afinal de contas tinham que dormir separadas? A mãe, mucama faceira, disse que pelos costumes das terras natais, se não separassem as duas após o berço, uma roubaria a alma da outra por amor, para preservar a amada irmã das crueldades da vida, mas não teve a devida coragem. E elas nunca matariam, por amor e por medo, é que não sabiam quem morreria e a tentativa de assassinato poderia acabar em suicídio.

Às vezes no entorpecente despertar acabavam confundindo as identidades. Sua mãe disse que por essa razão foi que separou as duas no sono, mas sem a irmã ao lado nem sono havia. Dormiam assim, com joelhos sobrepostos, no contato das testas, uma com as mãos no cabelo da outra. Assim sonhavam sempre um único sonho.

Agora em camas avulsas, não dormiam. A fricção dos joelhos magros perturbava, seu cabelos não eram tão sedutores de tocar quanto os da irmã e a parede era mais fria que a delicada cabeçinha da outra.

Certo dia, quando não suportavam mais ser separadas, as duas em um forte abraço e um entrelaçar de pernas uniram-se com tanta força que a mãe temia que na tentativa de dividi-las acabasse por arrancar o braço de alguma delas e sabia que seu destino era esse de viverem unidas e que agora não se separariam mais. A mãe se conformou.

Com o tempo o abraço emendou-se num elo e o entrelaçar de pernas acabou dando um nó. Mais depois já não era mais possível dizer que membros eram de quem. As irmãs se tornaram gêmeas siamesas, e quando morreram o luto foi dobrado e seu caixão tinha a forma de um coração desses meio quadrados.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Ramos de Graça



Uma multidão olhava nos olhos daquela imensa criatura. Nem todos os dias teriam aquela chance. Sentir-se pequenos e impotentes fazia parte de suas rotinas. A rotina também não fez parte daquele cair de tarde. Ao saírem de seus cubículos, de seus escritórios, seus grandes nadas, seus batentes, teriam eles, voltado para casa, como rancor e fatigados, com a mínima vontade de abrir suas bocas inutilizadas pelos patrões, chefes e donos, que lhes queriam calados, robótico, asmáticos. Sim, em dias e dias, passariam calados pequenos e impotentes, mas não naquele poente rosado. Esse foi o dia de serem sim, pequenos como sempre, menores que o habitual, mas fortes como se a rotina fosse a esperança, lhes desse forças em cada vez que se sentiram obrigados a ser cabisbaixos, a se absterem à força e engolir a própria voz, que tem ganas por liberdade. A rotina também, naquele dia e em nenhum outro, animar-se-ia com o acúmulo de amarguras, cuidadosamente coletada, sem que sobrassem folgas, compactada para que coubesse mais, sempre mais, feito coração de mãe. Naquele dia sorriram fitos naquela criatura colossal, que impotente, flagelando-se com o atrito na areia, esperava não ajuda, era sábia a criatura, sabia que esperava era o vencimento, a derrota, a derradeira. A criatura por sua vez olhava-os pela primeira e única vez, com um “quê” de fascínio, mas mais ainda com um olhar dócil e paterno. Era ela Pai porque na dor e na incapacidade de se ajudar, ajudava-os. Pai, sim, pois sabia que tudo que um pai mais pode dar ao filho é a grandeza, e isso, ela tinha de sobra. Grandeza, nunca grandiosidade, pois quem está fadado ao fracasso, nem ao menos saberia o que fazer com a grandiosidade, ela apenas pesaria neles. De certa forma, também considerava-se “monstro”, mas mostros, cada um deles já era, ela sabia, desde antes do dia em que disseram suas primeiras palavras.

Tocavam-na sem carícia e carentes, todos tanto, tão transformados, tão deformados, já andavam ocos. Encostavam as faces em redor de sua grande boca, como se querendo ser engolidos, levados com ela para aquele lugar nenhum de descanso (recesso, como chamariam). Fita, notou que no fundo não queriam o interior de sua boca de Pai, queriam apenas um beijo, grande beijo que só ela poderia lhes oferecer, mas que se oferecido, negariam, queriam mesmo era roubá-lo.

Já no cair da tarde, no desfalecer das forças, aquelas últimas, eis que veio a lua. Majestosa, distante imponente como jamais seriam aqueles todos a quem observava. Com a lua a maré subiu.

Então no cair da tarde, com as útimas forças, a baleia conseguiu desencalhar, virou-se lentamente, e nadou em direção ao reflexo de sua heroína.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Albergh...



Abriram um albergue,

Só para mendigos.

Já na primeira semana,

Tiveram que tirar

As barras dos banheiros

E as cordas das cortinas.

domingo, 27 de junho de 2010

A Essência e os Guaranás



Olhavam o tempo passar junto às margens do Guaraná sentados no tronco deitado sobre a terra. Lá o tempo passava como passava o rio, as vezes rápido, outras vezes mas devagar, mais calmo.

O rio não tinha esse nome, tinha um outro qualquer que não tinha a mesma graça nem trazia o mesmo sabor às suas memórias e também porque assim como é da natureza do rio, fluir, é da natureza dos pequenos dar nomes. Chamaram-no assim, pois mais ao longe, mais perto na nascente tinha uma árvore ancestral de guaraná. Tão velha que ao envergar-se para trazer a sobra ao rio, reclinou-se tanto que beijou a correnteza, trazendo a água durante muitos metros com o sabor da sua velhice.

Na primavera essa mesma árvore confeitava o rio de néctar e pétalas, dando ás água o mesmo sabor de sempre, mais doce do que nunca.

Mas ao passo que as folhas iam murchando e se perdendo em fragmentos na água, junto ao sol do verão, o Guaraná se fermentava e então era a vez dos adultos tragarem daquele rio. E quanto mais bebiam, mais rápido o tempo passava e menos eles notavam.

Ao que o tempo trazia o outono o guaraná despejava no Guaraná seu verde vel, que junto com as flores e o néctar já velhos e fermentados, amargavam assim as águas e a vida dos adultos, mas não a dos velhos. Esses não sorviam o líquido no rio, tinham já a tranqüilidade da idade. Imergiam, vasilhas de bronze em suas corredeiras e levavam um pouco do velho vinagre do Guaraná para casa. As águas do Guaraná eram usadas então para temperar o carneiro, que na primavera pastou, no verão trouxe a lã e que agora era posto à mesa.

No inverno esfriava tanto que as águas do guaraná congelavam, e de lá não se sairia mais nada de beber até a próxima estação. Congeladas, estagnadas agora era a vez das águas do Guaraná agradecerem ao guaraná criando junto ao sol, mais belo e plano espelho que era para mostrar á velha árvore o tanto de vida q’uinda tinha.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Onérea



Roubava sonhos,,,

Roubava sonhos. Não sonhos de quando se sonha, sonhos de quando se dorme; não como se roubam os dinheiros, mas como se roubam os valores, também, roubo não seria a palavra exata para tal ato, seria mais como uma divisão forçada, como um gato de TV a cabo. Via o que os outros sonhavam, sem que esses deixassem de sonhar, sem que esses soubessem da sua presença nebuliforme. Depois, sorrateira, colocava tudo no papel. Os sonhos não eram dela, mas as palavras eram e todas muito bem descritas. Não servia para publicar, mas para inflar o ego. Dizia não poder publicar por não ter as devidas licenças. Dizia também que seu oficio não era o de escritora e sim descritora.

Quando dormia, viajava o mundo com os olhos, até que achasse um sorriso dorminhoco de vítima. Então, o mundo se desmundava a mostrar suas belas cores.

Tinha gente que sonhava com romances em sépia, tinha gente que sonhava com coisas que voavam, tinha gente que sonhava com suspenses soturnos, e crianças que sonhavam com guerra. No seu trabalho de descritora, já havia descrito de tudo e ainda assim haviam muitos mundos a serem explorados. Gostava mesmo era de visitar os sonhos dos velhinhos, esses sempre tranqüilos como que esperando uma velha visita que não tardaria muito. Muitos sonhos, muitos tesouros e quando acordava já de manhã, chorava. Não por não ser real, mas é que as pessoas já nãom dava valor aos seus sonhos, preferiam ter a coisas sempre substratas, sempre supérfluas. Mesmo assim, continuava a invejá-los todos, porque não tinham que viver de sonho dos outros, porque tinham seus próprios devaneios. Ela não, e como não sonhava, não descansava, o corpo estacava, mas a mente maquiava, mesmo em outras terras menos concretas.

E o mundo de verdade era sufocante, sempre mais cansada de que o ontem, seguia já bem bamba na sua máscara de colunista de um jornal que não vendia muito. Tudo era tão sem sal, sem sonho nem nada.

Sempre sem se queixar, sempre mais cansada que o ontem, houve o tempo em que andava tão preocupada com tudo que não conseguia mais dormir, sem dormir, não sonhava; sem sonhar, não vivia; sem viver já não se bastava.

Decidiu que para ser levada pelo rio, teria que livrar os pés do concreto, ir viver no mundo dos sonhos, seu reino tão encantado.

Aqui, ficou apenas uma pequena coluna no jornal em que trabalhava: Fulana da Silva, você sempre será lembrada; e logo foi esquecida.

Do lado de lá, sorria agora sem peso no corpo, sem corpo, sem culpa. E visitava as vezes o sonho dos parente que era para que matassem a saudade.

De herança deixou apenas um punhado de escritos sem pontuação, acentos, sem sentido, que ninguém que nunca entenderia.

De Antonio Ganzer

Com uma grande ajuda de uma grande amiga,

Mirian Conci.

quinta-feira, 13 de maio de 2010



Saveiro

Restei em sombra, a meia-luz, a meia-volta, a meia-vida.

Restei silêncio, rouco.

Restei diverso, pouco.

Restei inverno.


Parti, algo grande em mim morreu

E no lugar profundo daquele eu

Eu nenhum outro nasceu


A vida que eu vejo distante passar

Já não é mais minha, torta

E não é mais viva, morta

É um barco errante em alto-mar

- A naufragar, a naufragar


Foi o vento bruto, de qualquer lugar

Rompeu o mastro, rasgou as velas

Cruzou no infinito as paralelas

Fez-me órfão de porto-lar

- Desencontrar


Nadei, nadei a me agitar

Mas não houve santo milagreiro

Nem reza de bom marinheiro

Que me fizesse parar

- De afundar, de afundar

Arthur P. Bedin

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Como amar quando há mar?


Era leito de mulher, na posição da justiça e sem os olhos vendados deixava a vida correr em seus braços como flui água. Charco na mão esquerda ,arrebatada aos céus, donde a vida era derramada, e em forma de concha de beber. Nas entre - falanges a água escoava vagarosamente, pingava um pouco no chão e para essas infelizes gotas, era fim, mas todo o resto passeava pelas costas da mão e descia naquele corpo. Na mão direita, que descansava suspensa próxima à coxa, corriam já fracas de tristeza as gotas que logo passariam pelo dedo médio e cairiam para onde a mão apontava. O mesmo veio d’água que a beijava na mão esquerda era fruto de outro maior que se bifurcava inda lá no alto. Com isso a água tocava o resto do seu corpo a começar pela cabeça. O veio ia tocando, tímido, seus cabelos, passeava por trás das orelhas, tocava os olhos, ora fechados, ora não. Pingava na ponta do nariz e ela podia até sorver as gotas que caiam fartas na boca. A água que corria pelo queixo juntava-se com uma parte da que descia os ombros, se encontrando nos seios eriçados pelo frio da vida que lhe tocava o corpo, desciam pela barriga. Num sublime instante, tocavam o umbigo, belo e pequenino centro do corpo. Encharcavam-se os pelos pubianos e a água que caia deles só voltava a tocar o corpo na altura do joelho esquerdo, levemente encolhido para dentro. A outra parte da vida que descia da cabeça, pegava o rumo das costas, encostando nos caroços das primeiras vértebras, descendo sem pressa pelas costas, fazendo suave curva nas nádegas para mais tarde alcançar o calcanhar.

Nos pés da mulher, a água saía do meio dos dedos e confluía-se em algum lugar logo ali perto formando um rio que começava pequeno tal um veio e como se ao invés da água se perder no meio das rochas ou absorvida pela terra, tomava emprestado gotas de orvalho ou algo semelhante para se tornar maior, cada vez maior. E o rio da vida corria fazendo curvas ganhando volume, profundidade e velocidade. Fluía conforme seu tempo, mas sem nunca parar ou tornar-se menor. Caia como catarata, cachoeira, queda d’água, fós. Adentrava a terra e criava cacimbas, evaporava-se e fazia chuva. Sempre vida, sempre água, até virar mar.

Assim como água era vida, a correnteza era tempo. E com o tempo, com a vida e com o rio, via os dias passarem e as noites chegarem sem nunca se mover. Se levantasse o pé mudaria o destino das águas e os que bebiam dos rios morreriam sedentos. Não se movia, porque sabia que em algum lugar o motivo da sua própria vida bebia da água que ela trazia dos céus.

A vida e o tempo pesam mais do que a medida em si, mas quando se sabe que há alguém por quem viver, alguém para quem dar a vida, o fardo passava a ser leve como salpicos de chuva. Porém esse que bebia dela, vivia por ela e por ela morreria, ilhava-se, entretanto, de além do bojador. Para chegar ao seu norte e beber d’água dos lábios dela teria de atravessar um mar a nado, mas a água do mar, por ser destino final, tinha o sal de ser impura, por tanto, intragável.

Assim seguiam, ela dedicando a vida à vida despejar ao seu amado, ele amargurado por não mais que a vida ter, aguardando o dia em que a maré fosse engolida por mar, porque viver não era vida sem amar.

(Antonio Ganzer)

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Step Sem Stop

Era daqueles que sempre olhava para os próprios pés, por isso nunca sabia para onde estava indo, como voltar ou mesmo quem cruzava por ele.

Caminhava pisoteando no destino, e por não olhar pra frente negava os acasos com o desamor da quem simplesmente não notava. O destino, por sua vez, aquela avenida de sobes e desces, altos e baixos, simplesmente continuava sem nunca acontecer. Quem não olha pra frente nega não só a passagem, mas o futuro. Há sim uma vantagem em olhar sempre pra dentro da calçada, não se tropeça, não se cai, não se fere e não tem que se levantar para seguir à diante.

Quando pisava nultima brasa que fervilhava já o filtro do cigarro, apagava não só uma coisa, mas uma memória, daquelas que permeava o passado com inocência, mas que perdida junto às outras fazia falta.

Seus sapatos eram belos, assim tinham que ser já que não notava outra coisa na face do chão, seu olhar também era, mas esse ninguém notava por estar ele sempre cabisbaixo.

Era daqueles que olhava para os próprios sapatos, sem nunca notar belos tamancos ou mesmo pés delicados, sem nunca cometer deslizes, nem pisar em rachaduras. Andava se esquivando dos cacos de vidro, das poças, das dores, das lágrimas, sem nunca saber para onde ia, sem nunca chegar a lugar algum. Caminhava e descontinuava, fugia do mundo que o acercava acima dos joelhos.

Andando e andando, não viu a pobreza dos mendigos que dormiam empoleirados em papelão, não viu o panfleteiro que o oferecia qualquer coisa que depois se tornaria lixo, não viu o sorriso da moça que o olhava admirada, não viu a cor do sinal de trânsito, não viu o modelo do carro que passou por cima dele... Viu apenas um túnel de luz e a lembrança de seus nobres pés que faziam calo de tanto nunca levá-lo a lugar algum.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Com amor de mãe I



Toda vez que paria um filho era como de fosse dela, e só dela. Já tinha ajudado a dar a luz a tantos que nenhuma outra pessoa continuava contando, mas ela sabia. Sabia não só número dos pequeninos, mas sabia também distingui-los pelo timbre da voz, pelas cores de cabelo e pela rendondez das faces, que para qualquer outro seria a mesma coisa, mas ela sabia. Saberia mesmo sem tê-los visto mais que uma vez. Saberia sempre, mesmo depois de anos, mesmo se cruzasse com algum de seus tantos filhos na rua, com barba e mesmo sem dizer palavra alguma, ela saberia.

Mesmo sem ter filho algum, tinha vários. Esses vários, mesmo sem terem lembrado, já a haviam amado. Era mãe de tantos, mas era mãe de nenhum filho seu.

Parideira desde a formação, sempre com o oficio de dar a luz ao que não tinha. Era rica, tinha tudo o que queria, vários filhos, mais nada. Não morava em casa grande, mas não lhe importava, passava a maior parte do tempo no hospital ajudando as madres e ao mesmo tempo sendo uma.

Sentia amor aos filhos alheios como se fossem seus pequenitos. Tinha na lembrança, o timbre do primeiro pranto de cada um que já nasceu naquele hospital, sabia a cor dos olhos de cada, mesmo aqueles que não os abriam em fronte dela. Sabia, porque mesmo não sendo, era mãe.

Tinha nas faces a exaustão, não do trabalho incansável, mas das tantas dores do parto que sofria por dia, das incontáveis emoções de ser mãe de pequenos, de cada lágrima da dor do primeiro fôlego, dos nove meses que punha nas costas quatro ou cinco vezes por semana.

Parideira desde a formação, mas mãe de nascença. Tinha tantos filhos, mesmo inda com as mamas intocáveis, mesmo com o ventre imaculado.

Queria um filho só seu, queria tanto, mas tinha tantos e tanto amor a dar que mal tinha tempo que arranjar um marido, quanto mais um pai.

Depois de incontáveis anos trabalhando como parteira, mesmo contra sua vontade, já andava tão velha que o hospital tinha que lhe dar aposentadoria e mais que isso, o descanso que ela nunca quisera.

Nos primeiros meses de suas eternas férias, sentia, não um vazio, mas uma explosão de sentimento, tanto amor a dar e nenhum filho a ter. Era solitária e calada, tudo o que sabia fazer agora era o que não podia mais, o que fora privada de ter... filhos alheios. Assim, a vida não bastava.

O vazio era tão grande, a consternação já ia apertanto o peito que não respiraria mais se não fosse aquela carta.

Certo dia o correio lhe entregou a satisfação de uma vida em forma de papel:

“ Querida senhora Maria

Talvez você não me conheça por nome, mas venho há tanto tempo sentindo um vazio. Não sabia por que, mas toda noite sonhava com esse nome. Tantas vezes perguntei a meus pais “quem poderia ser”. Vivo agora longe de minha terra natal, aqui nenhuma pessoa tem nome similar a esse, mamãe me disse que só poderia ser você.

Como disse talvez não me conheça, mas nasci já querendo conhecê-la, ao mesmo tempo que nasci conhecendo você. Sinto-me boba ao falar disso para uma pessoa que vi apenas uma vez na vida, mas para mim é como se eu a tivesse conhecido a vida inteira. Nem ao menos sei se continuas viva, mas esperarei por toda a minha vida por uma resposta dessa carta.

No fundo sei que você também me conhece, dizem que fui a primeira pessoa que já tiraste do ventre de outra, a primeira que ajudaste a respirar. Dizem que nem mesmo o mais velho médico esquece o primeiro parto, mesmo sabendo que és enfermeira e espero que isso lhe valha bem.

Em breve serei mãe também e estou voltando ao Brasil para que justamente você me ajude a dar a luz a outra criança que em breve sairá dessa criança que também ajudaste a parir.

Com amor, Ana.

Ps: Esperarei por toda a minha vida por uma resposta dessa carta, mas meu pequeno Paulo não pode esperar tanto. Então realmente espero que respondas esta carta.”

Em papel tinta e lágrimas Maria disse:

“Querida Ana:

Sei que assim, depois de tanto tempo não me reconhecerias, mas te enganas em pensar que eu não saberias quem tu és. Te reconhecerias mesmo cega como já quase ando, e se inda não ando foi só para poder ler essa carta.

Tenho amor de mãe de tantos, mesmo sem ter tido um só meu, mas saibas que és singular para mim. Te tantos teu pranto foi o mais belo, mais longo e mais doloroso que ouvi em toda a minha carreira, que como já deves imaginar, tem a mesma quantia de idade que tens de vida. Sim não foram poucos os partos e como você disse, para mim é impossível esquecer o primeiro parto, mas também assim foi com a segundo o terceiro e todos os outros dos quais só eu os lembro inda hoje.

Muito embora tenha tantos outros, tu foste a única que já me escreveu, mesmo que pense que alguns de quem não tenho noticia desde nascença, já tenham tidos filhos, portanto, de certa maneira já me venho sendo avó sem saber.

Ah, minha querida Ana, não imaginas o quanto esperei por ter noticia de algum filho meu. Mas agora é tarde, o que nunca tive no ventre tive nas costas e temo ser mãe desnaturada, pois ando já tão velha, tão fraca da memória, que temo parir um filho novo meu e esquecer de um antigo que já tive.

Espero que recebas esta carta antes de retornar ao Brasil, mas se acaso vier, procure outro médico, e ao invés de vir ao que muito tempo foi “meu” hospital, venha ver-me em meu funeral, que se agora posso ser avó, mesmo sem ter sido mãe, também tenho a paz de poder ser defunto.

Com amor de mãe, Maria.”

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

O Capitão da Praça da Capital




Era um mendigo, mas era orgulhoso, não aceitava caridade, tinha era a ousadia de pedir esmola, um parvo pra quem via de longe. Uma coisa era verdade, nas ruas da capital não se via mendigo tão bem arrumado como ele. Vestia uma camisa pólo branca e amarelada nas axilas, calças sociais normais exceto pelo furo nos fundilhos, sapatos belos e surrados , um cap de marinheiro e uma barba de fiapos cor de prata. Era um mendigo orgulhoso, mas era doce, como sabia ser doce aquele louco que contava histórias fantásticas do mar para as crianças enquanto fumava o seu cachimbo com fumo imaginário. Parecia até que as amarguras da vida não lhe abatiam, continuava sorridente e orgulhoso, sempre orgulhoso. Chegava a diminuir o sofrimento dos pivetes com suas narrativas, que se não matavam a fome, ao menos faziam esquecê-la. Os pequenos amavam tanto aquele homem que sonhavam em ser marujos e brincavam de navegar na praça.
A única coisa que aceitou na vida foi um cachimbo e um café de um velho poeta que reconheceu na loucura daquele senhor algum valor na vida, mas não foi por caridade, na verdade se o poeta tivesse mais a oferecer naquele momento, teria dado, certo que sim, mas o poeta não tinha escrito mais nem vendido mais nem nada. É que andava passando por um estado de tristeza maior que podia suportar, até mesmo para um poeta cuja tristeza é tão necessária, e assim andava empobrecendo e mal tinha para pagar as contas, mas tendo ouvido as histórias do mar contadas por aquele marujo desvairado, percebeu que quando a vida não é doce a gente inventa uma fruta qualquer por distração e sobrevive, e que isso era belo.
O poeta lançou um livro e dedicou “ao mendigo orgulhoso da praça” e enriqueceu com o livro. Tentou doar parte do que arrecadara com o livro que andava de vento em popa, mas era, como todos sabiam, um mendigo orgulhoso...
O poeta continuou sua vida e sua fase ruim um dia passou, e continuou escrevendo, ora vendia bem, ora mal, mas continuava vivendo, e com gosto.
Certo dia, chovia nas ruas da capital e também nos olhos dos pobrezitos que mendigavam pela praça, “O vovô Capitão, que nosso senhor o tenha faleceu hoje de manhã ” disse a índia mãe dos pequenos. O poeta após saber do trágico acidente pediu à prefeitura que fizesse algo simbólico por aquela figura que a todos era tão cativa e doce. A prefeitura consentiu por ser o poeta, agora que era famoso, tão popular e influente. Pois bem, heis que fizeram um memorando no centro da praça:
“Aqui dormia o mendigo mais cativo de história do mundo, capitão dos pivetes grumetes e senhor das maiores aventuras marítimas jamais vistas”
Atrás do memorando foi plantada uma árvore. Com os anos ela cresceu, cresceu e ia se tornando cada vez mais frondosa. Em certo outono, quando caíram as folhas todas, para a admiração geral, a árvore tinha o formato de uma nau. E por serem as flores azuladas, quando o vento passava parecia que a nau navegava em meio aos rochedos, que eram na verdade os bancos da praça.
Nesses bancos o poeta passou a escrever, não mais poesias, mas as histórias do mar narradas por aquele senhor que lhe trouxe tanto gosto por viver, que passava diante dos seus olhos, junto à nau que navegava na praça. E lá ele esperava um dia se juntar àquela tripulação.