quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Encantador de Cães


De naquim jorra o coração
Tristeza que sai com água
Que fazer pra chorar então?

Por onde quer que andasse era seguido pelos cães que se enfileiravam ao seu caminhar cabisbaixo e envergonhado. Por esse notável acontecimento Maurício Malaquias atendia pela alcunha de encantador de cães. Diziam que eles o seguiam porque sentiam sua aura de bondade, mas a verdade era que Maurírio tinha nas costas uma grande feriada que supurava a fogo lento que no seu caminhar de sol a sol liberava um cheiro peculiar de carne que atraia não só os cães mas também os urubus e tudo o mais que comesse carniça.

Maurício nunca gostou da perseguição, de início até temia os cachorros, pois notava em seu olhar alguma gana de fome, e depois que se acostumou com os olhares, passou a detestá-los pelo simples incomodo que isso muitas vezes lhe trazia. De fato seu aroma de carne era tão irresistível ao faro dos bichos que até mesmo os cãezinhos de madames esqueciam da vida mansa para seguir a matilha e os vira latas abandonavam sua rotina de fornicação e revirões de lixo para marchar naquela valsa.

O odor que Maurício Malaquias emanava era para os cães, mais que simplesmente carne, era qualquer coisa como a música para os ratos de “O Flautista de Hamelin”,talvez por isso nunca chegassem a atacá-lo, por saberem que aquela fragrância tão ímpar se perderia junto ao dono. Houve um a vez inclusive que um dos cães se rendeu à tentação e lambeu-lhe a ferida, em seguida foi devorado pelo resto do bando. Aquilo para eles era fazer justiça.

Maurício não tinha nada na vida, ou tinha o que não queria, cães, muitos deles. Desejava desesperadamente sarar a ferida tanto para se livrar dos companheiros indesejados. Além disso e sua dor não era para os fracos. E por mais que o que fedesse fosse apenas a pele que cobria a ferida, tanto coagulo e tanto pus ofuscavam a verdadeira gravidade daquela nódua. Sua chaga era fruto da infecção de uma ferida mais antiga, de um amor mal curado que Maurício guarda secretamente, mas manter segredos dói, e , nesse caso, atraia outros sofredores da vida.

Desejava desesperadamente sarar a ferida, viver sua vida, esquecer sua querida, mas tudo isso ele não podia. Não podia com os cães nem com sigo mesmo e, como todos os corações perturbados, não se sentia potente para ir contra o amor. Que fazer então?

Veio tempo que o pobre menino não pode suportar o peso e se jogou de encontro à correnteza.

Na aflição de perder aquele cheiro de amor os animais o seguiram como fiéis amantes.

Então Mauricio acordou na outra margem, através do véu, e olhando para trás ouviu que as águas caudalosas, sua algoz, produzia não o som da correnteza, mas um uivo uníssono de tristeza. Então deitou-se e primeira vez em muitos anos apreciou o dia claro, sem a silhueta dos urubus, que nunca mais nesta vida voltariam a sombrevioar sua cabeça.




sexta-feira, 29 de julho de 2011

A Quebra



Ao resvalar do cálice entre os dedos dela houve uma fração de segundos, daquelas que o tempo congela e se pode, por um mísero segundo se pode perceber a plenitude da vida, o tamanho do universo, a eternidade. Logo depois o mundo volta a girar mais rápido para compensar o segundo parado e aí se acalma como se não o tivesse acontecido. O fragor do cristal e do que era antes seu conteúdo em choque com o chão encerram um capítulo, fecham as páginas de um livro . Nesse momento os olhos se fecham com força na tentativa irracional e instantânea de abafar o som. Quando se abrem, o universo, a vida e o tempo já voltaram a ser. Lentamente ela desvia o olhar em sinal de distração. Dentro dela alguma coisa mudou. O escarlate do merlot sobre a superfície de mármore sangrava com a dor de uma idéia tão frágil quanto seu recipiente de cristal. Não seria mais a mesma tal qual o cálice de vinho que não voltaria mais a quebrar-se. O tempo seria o mesmo, o universo seria o mesmo e assim seria também com vida, mas ela não.

Aos poucos tentava recobrar a vida como se o acontecido fosse um simples acidente, de fato como já acontecera com tantos outros frascos, mas ao fitar o estrago tudo que ela conseguia ver era o seu reflexo no chão banhado em sangue.

Sem pressa atravessou os cômodos estreitos que davam acesso à lavanderia e em silêncio recolheu entre as mãos um trapo velho porém limpo que balançava no varal como sua réstia de esperança. Com frieza se ajoelhou e pôs-se a limpar. Ao sorver o pano o líquido perfumado notava ela que não podia se apagar o passado. Passava o pano com o cuidado de quem esconde uma lembrança de si ao passo que as lágrimas inchavam negando o esquecimento. E ao escorrer da lágrima no rosto, ao cair da lágrima no chão e ao diluir-se no tinto o tempo continuava, o mundo continuava girando e a vida passava e passava sem parar, sem parar...

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Fim da Espera



Estarias agora adormecida

Em um sonho suave,

Vendo o passar da vida

Esperando alguém que te salve?


Estarias agora solitária

Em meio ao breu

Esperando algum novo amor,

Lembrando o velho que alguém te deu?


Estacando a ferida?

Chorando escondida?

Erguendo a dor como um troféu?


Deixa que murche esta flor.

Desabrocharão outras onde essa cresceu.


O fim da espera do que já foi teu

Será teu despertar, teu bater de asas

E seu sentimento será como a luz que se apaga,

Não mais como a que sega.


terça-feira, 10 de maio de 2011

Angústia

Título dedicado ao Graciliano Ramos*

Tudo começou com um único pedacinho, um ístmo de mim. Pedacinho que nem sabia qual era, mas sabia que me faltava. Sabia que já tive e perdi no meio da estrada, mas a estrada era sem volta e os caminhos incertos. E por onde andará aquele pedaço de mim?
Tentei olhar e olhar por cima dos ombros, para ver se achava qualquer coisa pequenininha, pequena mas que fosse minha, e aos poucos fui perdendo tudo o que eu era, tudo o que eu tinha. Agora já não tinha mãos para juntar os braços. Agora olhava por cima dos olhos na falta dos ombros. Já não sabia mais se procurava o que ou quem. As horas passavam e eu ficava ali deitado no meio do caminho, sem poder me recompor, sem poder poder, sem poder sentir, sem sentir dor.
Tudo começou com um pedacinho que agora já esqueci dos detalhes, mas lembro que foi o começo.
Os meus pedaços tinham sido jogados pelo trajeto migalha por migalha para eu poder voltar pra casa e esfarelado, tornei-me incapaz de procurar, impossível de ser achado.
Há tempos que não tenho tempo para nada porque há tempos o tempo não me pertence.
Esqueci por onde estaria meu caminho pelo Bojador* que antes, de dia, cortava o horizonte e agora com a chegada de tão doce lua, se escondeu nalgum lugar do outro lado do mundo, no fundo do mar.
Essa vontade que eu tenho de lembrar, que eu tenho de voltar, que eu tenho de chorar. Sim, de chorar, essa angústia que me afoga, essa letargia que me toma as forças.
Quanto mais vontade eu tenho de encontrar mais vontade tenho de chorar.
Estendo a mão para agarrar o brilho da minha vida que se comporta como um vaga-lume diante dos meus olhos, mas minhas mãos já não são minhas, então vejo a luz se afastar tendo sua essência engolida pelo breu, vejo tudo com olhos que não são meus.
Essa angústia de quem vive no porto e vê a vida indo num barco a vapor, com o seu amor acenando com um lenço. Angústia de quem está demasiado velho e vê no pôr do sol a incerteza de acordar para ver a próxima alvorada. Essa Angústia de quem se esqueceu. Essa Angústia me tornei. Essa Angústia agora sou eu!

terça-feira, 19 de abril de 2011

Casquinha de Siri



Tinha sua proteção voltada para o mundo ao mesmo tempo que ansiava que o mundo lhe desse assim, de mãos beijadas, alguma aventura. Sua contração era sua própria contradição. Se fechando às dores, às magoas, à derrota, acabava por fechar as portas pelas quais quisera que entrasse a gloria.

Sua casca cuidadosamente posta, parte por parte, depois de cada decepção, derrota, dor, já era tão magistralmente maquinada que até poderia se mover, perambular pelos caminhos insertos sem se preocupar com as incertezas dolorosas que viriam. A casca estaria lá para protegê-lo, sempre cerrada, sempre firme.

Ao andar não notava, mas os passos passavam a ser cada vez mais curtos, o próximo sempre mais sôfrego que o anterior. Não notava, mas seu corpo transpirava a media que ele ia em direção ao sol. A casca que já era pesada, agora assava as partes que atritavam contra o interior da proteção. Até o momento que ele se viu cansado. Cansado de carregar aquilo que passara em instantes da sua salvadora ao seu fardo. Desistiu, destacou a proteção que aos poucos o destruía.

E o jovem, nascido em meados de julho, pela primeira vez em anos, abriu os olhos do lado de fora da casca e notou que se encontrava em uma praia maravilhosa. Notou que fazia calor, mas que o vento o deixava confortável. Ouviu pela primeira vez o som fragoroso das ondas, aquele que dentro da casca fazia um chiado insistente. Finalmente o jovem há tanto recôndito, notou que não estava só.

domingo, 3 de abril de 2011

Armadura de Papel


Por que é que todo mundo quer que tudo dê certo? Que mal há em ser uma criatura errante, dessas que tropeça e cai e que pra não cair de novo não se levanta e passa a rastejar como o verme que sempre foi?

Eu mesmo quero que o maior erro de minha vida seja a minha própria vida. Desfrutar da maior vantagem de um ser vivente, errar. Desejo errar o alvo, a porta a ser batida, o caminho de casa. Ah como queria errar o caminho de casa e ver em que esquina parar, provavelmente, com toda a violência dos dias de hoje, eu seria abordado por um assaltante medíocre, e este simplesmente me pediria a hora. Errei, era um simples vivente como eu.

Quero a palavra errada para a pessoa errada, mas na hora certa, aquela inapropriadíssima hora. E com tantos caminhos tortos poderia traçar uma reta rumo ao desconhecido, num universo de possibilidades, um abraço às coincidências.

Eu gostaria de ser o engano dos outros. As pessoas me confundiriam nas ruas em quanto eu confundia as ruas que desembocam no sopé do meu casebre, conheceria gente que também erra, e que ri do próprio erro. Gente que fala errado, que ouve errado e ama errado. Nisso eu caibo, nessa catástrofe do real. Tudo no mundo foi feito pra dar errado, é por isso que dá tão certo dentro da sua proposta.

"Achei que era paixão, mas foi só entusiasmo"; achei que lembrava mas esqueci, achei que sabia tanto, mas errei... Sem a queda não há ascensão e no fim das contas ganha aquele que errar mais.