quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Com amor de mãe I



Toda vez que paria um filho era como de fosse dela, e só dela. Já tinha ajudado a dar a luz a tantos que nenhuma outra pessoa continuava contando, mas ela sabia. Sabia não só número dos pequeninos, mas sabia também distingui-los pelo timbre da voz, pelas cores de cabelo e pela rendondez das faces, que para qualquer outro seria a mesma coisa, mas ela sabia. Saberia mesmo sem tê-los visto mais que uma vez. Saberia sempre, mesmo depois de anos, mesmo se cruzasse com algum de seus tantos filhos na rua, com barba e mesmo sem dizer palavra alguma, ela saberia.

Mesmo sem ter filho algum, tinha vários. Esses vários, mesmo sem terem lembrado, já a haviam amado. Era mãe de tantos, mas era mãe de nenhum filho seu.

Parideira desde a formação, sempre com o oficio de dar a luz ao que não tinha. Era rica, tinha tudo o que queria, vários filhos, mais nada. Não morava em casa grande, mas não lhe importava, passava a maior parte do tempo no hospital ajudando as madres e ao mesmo tempo sendo uma.

Sentia amor aos filhos alheios como se fossem seus pequenitos. Tinha na lembrança, o timbre do primeiro pranto de cada um que já nasceu naquele hospital, sabia a cor dos olhos de cada, mesmo aqueles que não os abriam em fronte dela. Sabia, porque mesmo não sendo, era mãe.

Tinha nas faces a exaustão, não do trabalho incansável, mas das tantas dores do parto que sofria por dia, das incontáveis emoções de ser mãe de pequenos, de cada lágrima da dor do primeiro fôlego, dos nove meses que punha nas costas quatro ou cinco vezes por semana.

Parideira desde a formação, mas mãe de nascença. Tinha tantos filhos, mesmo inda com as mamas intocáveis, mesmo com o ventre imaculado.

Queria um filho só seu, queria tanto, mas tinha tantos e tanto amor a dar que mal tinha tempo que arranjar um marido, quanto mais um pai.

Depois de incontáveis anos trabalhando como parteira, mesmo contra sua vontade, já andava tão velha que o hospital tinha que lhe dar aposentadoria e mais que isso, o descanso que ela nunca quisera.

Nos primeiros meses de suas eternas férias, sentia, não um vazio, mas uma explosão de sentimento, tanto amor a dar e nenhum filho a ter. Era solitária e calada, tudo o que sabia fazer agora era o que não podia mais, o que fora privada de ter... filhos alheios. Assim, a vida não bastava.

O vazio era tão grande, a consternação já ia apertanto o peito que não respiraria mais se não fosse aquela carta.

Certo dia o correio lhe entregou a satisfação de uma vida em forma de papel:

“ Querida senhora Maria

Talvez você não me conheça por nome, mas venho há tanto tempo sentindo um vazio. Não sabia por que, mas toda noite sonhava com esse nome. Tantas vezes perguntei a meus pais “quem poderia ser”. Vivo agora longe de minha terra natal, aqui nenhuma pessoa tem nome similar a esse, mamãe me disse que só poderia ser você.

Como disse talvez não me conheça, mas nasci já querendo conhecê-la, ao mesmo tempo que nasci conhecendo você. Sinto-me boba ao falar disso para uma pessoa que vi apenas uma vez na vida, mas para mim é como se eu a tivesse conhecido a vida inteira. Nem ao menos sei se continuas viva, mas esperarei por toda a minha vida por uma resposta dessa carta.

No fundo sei que você também me conhece, dizem que fui a primeira pessoa que já tiraste do ventre de outra, a primeira que ajudaste a respirar. Dizem que nem mesmo o mais velho médico esquece o primeiro parto, mesmo sabendo que és enfermeira e espero que isso lhe valha bem.

Em breve serei mãe também e estou voltando ao Brasil para que justamente você me ajude a dar a luz a outra criança que em breve sairá dessa criança que também ajudaste a parir.

Com amor, Ana.

Ps: Esperarei por toda a minha vida por uma resposta dessa carta, mas meu pequeno Paulo não pode esperar tanto. Então realmente espero que respondas esta carta.”

Em papel tinta e lágrimas Maria disse:

“Querida Ana:

Sei que assim, depois de tanto tempo não me reconhecerias, mas te enganas em pensar que eu não saberias quem tu és. Te reconhecerias mesmo cega como já quase ando, e se inda não ando foi só para poder ler essa carta.

Tenho amor de mãe de tantos, mesmo sem ter tido um só meu, mas saibas que és singular para mim. Te tantos teu pranto foi o mais belo, mais longo e mais doloroso que ouvi em toda a minha carreira, que como já deves imaginar, tem a mesma quantia de idade que tens de vida. Sim não foram poucos os partos e como você disse, para mim é impossível esquecer o primeiro parto, mas também assim foi com a segundo o terceiro e todos os outros dos quais só eu os lembro inda hoje.

Muito embora tenha tantos outros, tu foste a única que já me escreveu, mesmo que pense que alguns de quem não tenho noticia desde nascença, já tenham tidos filhos, portanto, de certa maneira já me venho sendo avó sem saber.

Ah, minha querida Ana, não imaginas o quanto esperei por ter noticia de algum filho meu. Mas agora é tarde, o que nunca tive no ventre tive nas costas e temo ser mãe desnaturada, pois ando já tão velha, tão fraca da memória, que temo parir um filho novo meu e esquecer de um antigo que já tive.

Espero que recebas esta carta antes de retornar ao Brasil, mas se acaso vier, procure outro médico, e ao invés de vir ao que muito tempo foi “meu” hospital, venha ver-me em meu funeral, que se agora posso ser avó, mesmo sem ter sido mãe, também tenho a paz de poder ser defunto.

Com amor de mãe, Maria.”

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

O Capitão da Praça da Capital




Era um mendigo, mas era orgulhoso, não aceitava caridade, tinha era a ousadia de pedir esmola, um parvo pra quem via de longe. Uma coisa era verdade, nas ruas da capital não se via mendigo tão bem arrumado como ele. Vestia uma camisa pólo branca e amarelada nas axilas, calças sociais normais exceto pelo furo nos fundilhos, sapatos belos e surrados , um cap de marinheiro e uma barba de fiapos cor de prata. Era um mendigo orgulhoso, mas era doce, como sabia ser doce aquele louco que contava histórias fantásticas do mar para as crianças enquanto fumava o seu cachimbo com fumo imaginário. Parecia até que as amarguras da vida não lhe abatiam, continuava sorridente e orgulhoso, sempre orgulhoso. Chegava a diminuir o sofrimento dos pivetes com suas narrativas, que se não matavam a fome, ao menos faziam esquecê-la. Os pequenos amavam tanto aquele homem que sonhavam em ser marujos e brincavam de navegar na praça.
A única coisa que aceitou na vida foi um cachimbo e um café de um velho poeta que reconheceu na loucura daquele senhor algum valor na vida, mas não foi por caridade, na verdade se o poeta tivesse mais a oferecer naquele momento, teria dado, certo que sim, mas o poeta não tinha escrito mais nem vendido mais nem nada. É que andava passando por um estado de tristeza maior que podia suportar, até mesmo para um poeta cuja tristeza é tão necessária, e assim andava empobrecendo e mal tinha para pagar as contas, mas tendo ouvido as histórias do mar contadas por aquele marujo desvairado, percebeu que quando a vida não é doce a gente inventa uma fruta qualquer por distração e sobrevive, e que isso era belo.
O poeta lançou um livro e dedicou “ao mendigo orgulhoso da praça” e enriqueceu com o livro. Tentou doar parte do que arrecadara com o livro que andava de vento em popa, mas era, como todos sabiam, um mendigo orgulhoso...
O poeta continuou sua vida e sua fase ruim um dia passou, e continuou escrevendo, ora vendia bem, ora mal, mas continuava vivendo, e com gosto.
Certo dia, chovia nas ruas da capital e também nos olhos dos pobrezitos que mendigavam pela praça, “O vovô Capitão, que nosso senhor o tenha faleceu hoje de manhã ” disse a índia mãe dos pequenos. O poeta após saber do trágico acidente pediu à prefeitura que fizesse algo simbólico por aquela figura que a todos era tão cativa e doce. A prefeitura consentiu por ser o poeta, agora que era famoso, tão popular e influente. Pois bem, heis que fizeram um memorando no centro da praça:
“Aqui dormia o mendigo mais cativo de história do mundo, capitão dos pivetes grumetes e senhor das maiores aventuras marítimas jamais vistas”
Atrás do memorando foi plantada uma árvore. Com os anos ela cresceu, cresceu e ia se tornando cada vez mais frondosa. Em certo outono, quando caíram as folhas todas, para a admiração geral, a árvore tinha o formato de uma nau. E por serem as flores azuladas, quando o vento passava parecia que a nau navegava em meio aos rochedos, que eram na verdade os bancos da praça.
Nesses bancos o poeta passou a escrever, não mais poesias, mas as histórias do mar narradas por aquele senhor que lhe trouxe tanto gosto por viver, que passava diante dos seus olhos, junto à nau que navegava na praça. E lá ele esperava um dia se juntar àquela tripulação.