quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Como amar quando há mar?


Era leito de mulher, na posição da justiça e sem os olhos vendados deixava a vida correr em seus braços como flui água. Charco na mão esquerda ,arrebatada aos céus, donde a vida era derramada, e em forma de concha de beber. Nas entre - falanges a água escoava vagarosamente, pingava um pouco no chão e para essas infelizes gotas, era fim, mas todo o resto passeava pelas costas da mão e descia naquele corpo. Na mão direita, que descansava suspensa próxima à coxa, corriam já fracas de tristeza as gotas que logo passariam pelo dedo médio e cairiam para onde a mão apontava. O mesmo veio d’água que a beijava na mão esquerda era fruto de outro maior que se bifurcava inda lá no alto. Com isso a água tocava o resto do seu corpo a começar pela cabeça. O veio ia tocando, tímido, seus cabelos, passeava por trás das orelhas, tocava os olhos, ora fechados, ora não. Pingava na ponta do nariz e ela podia até sorver as gotas que caiam fartas na boca. A água que corria pelo queixo juntava-se com uma parte da que descia os ombros, se encontrando nos seios eriçados pelo frio da vida que lhe tocava o corpo, desciam pela barriga. Num sublime instante, tocavam o umbigo, belo e pequenino centro do corpo. Encharcavam-se os pelos pubianos e a água que caia deles só voltava a tocar o corpo na altura do joelho esquerdo, levemente encolhido para dentro. A outra parte da vida que descia da cabeça, pegava o rumo das costas, encostando nos caroços das primeiras vértebras, descendo sem pressa pelas costas, fazendo suave curva nas nádegas para mais tarde alcançar o calcanhar.

Nos pés da mulher, a água saía do meio dos dedos e confluía-se em algum lugar logo ali perto formando um rio que começava pequeno tal um veio e como se ao invés da água se perder no meio das rochas ou absorvida pela terra, tomava emprestado gotas de orvalho ou algo semelhante para se tornar maior, cada vez maior. E o rio da vida corria fazendo curvas ganhando volume, profundidade e velocidade. Fluía conforme seu tempo, mas sem nunca parar ou tornar-se menor. Caia como catarata, cachoeira, queda d’água, fós. Adentrava a terra e criava cacimbas, evaporava-se e fazia chuva. Sempre vida, sempre água, até virar mar.

Assim como água era vida, a correnteza era tempo. E com o tempo, com a vida e com o rio, via os dias passarem e as noites chegarem sem nunca se mover. Se levantasse o pé mudaria o destino das águas e os que bebiam dos rios morreriam sedentos. Não se movia, porque sabia que em algum lugar o motivo da sua própria vida bebia da água que ela trazia dos céus.

A vida e o tempo pesam mais do que a medida em si, mas quando se sabe que há alguém por quem viver, alguém para quem dar a vida, o fardo passava a ser leve como salpicos de chuva. Porém esse que bebia dela, vivia por ela e por ela morreria, ilhava-se, entretanto, de além do bojador. Para chegar ao seu norte e beber d’água dos lábios dela teria de atravessar um mar a nado, mas a água do mar, por ser destino final, tinha o sal de ser impura, por tanto, intragável.

Assim seguiam, ela dedicando a vida à vida despejar ao seu amado, ele amargurado por não mais que a vida ter, aguardando o dia em que a maré fosse engolida por mar, porque viver não era vida sem amar.

(Antonio Ganzer)

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Step Sem Stop

Era daqueles que sempre olhava para os próprios pés, por isso nunca sabia para onde estava indo, como voltar ou mesmo quem cruzava por ele.

Caminhava pisoteando no destino, e por não olhar pra frente negava os acasos com o desamor da quem simplesmente não notava. O destino, por sua vez, aquela avenida de sobes e desces, altos e baixos, simplesmente continuava sem nunca acontecer. Quem não olha pra frente nega não só a passagem, mas o futuro. Há sim uma vantagem em olhar sempre pra dentro da calçada, não se tropeça, não se cai, não se fere e não tem que se levantar para seguir à diante.

Quando pisava nultima brasa que fervilhava já o filtro do cigarro, apagava não só uma coisa, mas uma memória, daquelas que permeava o passado com inocência, mas que perdida junto às outras fazia falta.

Seus sapatos eram belos, assim tinham que ser já que não notava outra coisa na face do chão, seu olhar também era, mas esse ninguém notava por estar ele sempre cabisbaixo.

Era daqueles que olhava para os próprios sapatos, sem nunca notar belos tamancos ou mesmo pés delicados, sem nunca cometer deslizes, nem pisar em rachaduras. Andava se esquivando dos cacos de vidro, das poças, das dores, das lágrimas, sem nunca saber para onde ia, sem nunca chegar a lugar algum. Caminhava e descontinuava, fugia do mundo que o acercava acima dos joelhos.

Andando e andando, não viu a pobreza dos mendigos que dormiam empoleirados em papelão, não viu o panfleteiro que o oferecia qualquer coisa que depois se tornaria lixo, não viu o sorriso da moça que o olhava admirada, não viu a cor do sinal de trânsito, não viu o modelo do carro que passou por cima dele... Viu apenas um túnel de luz e a lembrança de seus nobres pés que faziam calo de tanto nunca levá-lo a lugar algum.