sexta-feira, 29 de julho de 2011

A Quebra



Ao resvalar do cálice entre os dedos dela houve uma fração de segundos, daquelas que o tempo congela e se pode, por um mísero segundo se pode perceber a plenitude da vida, o tamanho do universo, a eternidade. Logo depois o mundo volta a girar mais rápido para compensar o segundo parado e aí se acalma como se não o tivesse acontecido. O fragor do cristal e do que era antes seu conteúdo em choque com o chão encerram um capítulo, fecham as páginas de um livro . Nesse momento os olhos se fecham com força na tentativa irracional e instantânea de abafar o som. Quando se abrem, o universo, a vida e o tempo já voltaram a ser. Lentamente ela desvia o olhar em sinal de distração. Dentro dela alguma coisa mudou. O escarlate do merlot sobre a superfície de mármore sangrava com a dor de uma idéia tão frágil quanto seu recipiente de cristal. Não seria mais a mesma tal qual o cálice de vinho que não voltaria mais a quebrar-se. O tempo seria o mesmo, o universo seria o mesmo e assim seria também com vida, mas ela não.

Aos poucos tentava recobrar a vida como se o acontecido fosse um simples acidente, de fato como já acontecera com tantos outros frascos, mas ao fitar o estrago tudo que ela conseguia ver era o seu reflexo no chão banhado em sangue.

Sem pressa atravessou os cômodos estreitos que davam acesso à lavanderia e em silêncio recolheu entre as mãos um trapo velho porém limpo que balançava no varal como sua réstia de esperança. Com frieza se ajoelhou e pôs-se a limpar. Ao sorver o pano o líquido perfumado notava ela que não podia se apagar o passado. Passava o pano com o cuidado de quem esconde uma lembrança de si ao passo que as lágrimas inchavam negando o esquecimento. E ao escorrer da lágrima no rosto, ao cair da lágrima no chão e ao diluir-se no tinto o tempo continuava, o mundo continuava girando e a vida passava e passava sem parar, sem parar...

Um comentário:

  1. Lembrei de O Vento do Los Hermanos.
    Os dias são muito longos e os anos são muito curtos.
    A vida passa e as coisas mudam, quer a gente queira ou não. Quer a gente veja ou não.
    Muito bom ganzi!!!

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